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Corpo de Baile do João Guimarães Rosa por Regina Pereira

Por Fernanda Pompeu em Arquivo

Corpo de Baile do João Guimarães Rosa por Regina Pereira é biscoito fino para ouvir e ler. Em um mundo – abarrotado de informações, opiniões, vídeos, áudios, poemas, grafites, greves, idas e voltas – ouvir a sensibilidade de uma leitora falando acerca de um imenso escritor, soa como água jorrando na superfície do deserto. Aproveite então!

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Fernanda Pompeu – Acelera Texto
Este é o seu RádioLíngua, canal de áudio do Acelera Texto. Conosco está a Regina Pereira – ela fez da língua portuguesa seu ofício como repórter, revisora, checadora. É também uma leitora apaixonada. O programa de hoje é sobre o livro Corpo de Baile, o sertão alquímico, a saga de um imenso projeto literário e suas várias configurações. Um livro que ainda aguarda ser lido em sua totalidade.

Regina Pereira
Em 1945, quando entrega os originais de Sagarana, Guimarães Rosa diz que está trabalhando num novo projeto, e pontua: “Mas até agora numa cabotagenzinha, esperando ajuntar carga suficiente, para fazer-se ao largo oceano. Já penso em escrever um romance, já estou engenhando – cranialmente. Como uma potência média, que começa a construir uma esquadra”.

Mas ele acha que para isso precisaria mudar de vida e expressa um desejo irrealizável:

“(…) Viver sem pressa. Se preciso, e possível, trocarei o Itamaraty por um emprego de fiscal em imposto do consumo, ou coisa parecida. Nada melhor do que uma casa nos subúrbios e um emprego rotineiro, deslustrado, obtuso, sem agitações, sem remoções, sem viajações”.

Acelera Texto
E ele troca de emprego?

Regina
É óbvio que não. Em 1948 é transferido para Paris, onde permanece até março de 1951. Neste período fica dividido entre seus planos mirabolantes, por exemplo descer o rio das Velhas de canoa (que não se concretiza), leituras, o trabalho no Itamaraty e a vida cultural de Paris no pós-guerra. Rosa só volta a escrever de fato quando se instala no Rio de Janeiro, diante do mar do Arpoador. Aí muda de tom dizendo que está escrevendo “um livro, um livrão, um livralhão”.

Rosa registra que escreveu Corpo de Baile em 1953-1954 e Grande Sertão: Veredas em 1954-1955.

Acelera Texto
Ao mesmo tempo?

Regina
Na verdade ele alternou a escrita dos dois, quando, segundo ele mesmo, “se viu num túnel, num subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo, só escrevendo eternamente”.

Vale relembrar aqui uma fala de Rosa sobre seu projeto literário depois de Sagarana: “O bom seria fazer-se um livro só, de 5.000 páginas, que seria escrito e reescrito durante a vida inteira. Ou – que beleza! – três gerações de romancistas (pai, filho, neto), trabalhando num roman-fleuve, catedralesco, pétreo, tri-generacional.

De certa maneira, ele colocou em prática esta ambição, pelo menos na parte que diz respeito ao roman-fleuve (romance-rio): o conjunto de mais de 1400 páginas, lançado entre janeiro e maio de 1956, que compreende as novelas de Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, é idealizado originalmente como um corpo só, pensado inicialmente como nove novelas, até o romance se desprender, ganhar vida própria, e Rosa fechar em sete o número de novelas. (Acredita-se que Meu tio o Iauaretê, publicado postumamente em Estas Estórias, seja a nona novela).

Mas, como tudo na obra de Rosa, o número sete não é por acaso. Estudos identificam uma correspondência entre as novelas de Corpo de Baile e os sete planetas da cosmologia tradicional. Sete também é o número dos conjuntos perfeitos: são sete os dias da criação, sete os ramos da árvore cósmica. Sete são os recados, sete os recadeiros, sete são as fazendas e os fazendeiros em O recado do morro, a novela central do Corpo.

Acelera Texto
Sete cabalístico. Corpo de Baile foi publicado quando?

Regina
Em janeiro de 1956 ele é lançado em dois volumes, num total de 822 páginas. Campo geral, Uma estória de amor e A estória de Lélio e Lina compõem o primeiro. O recado do morro, Lão Dalalão (Dão-Lalalão), Cara-de-bronze e Buriti, o segundo.

Já na segunda edição, de 1960, aparece em um só volume, com uma curiosidade, traz dois índices, um no começo e o outro no fim, com denominações diferentes:  No início: I. Gerais: (Os romances): Campo geral, A estória de Lélio e Lina, Dão-Lalão e Buriti. No fim: II. Parábase (Os contos) Uma estória de amor, O recado do morro e Cara-de-bronze. Como se, ao terminar a leitura, Rosa pedisse que relêssemos, agora com outros olhos. Algo semelhante acontecerá mais tarde em Tutameia com os Prefácios.

Depois, Corpo de Baile, para atender uma solicitação de mercado, surge em três volumes, vendidos separadamente, com outra configuração, como se fosse um tríptico:

Volume 1:
Manuelzão e Miguilim, contendo Campo geral e Uma estória de amor.

Volume 2:
No Urubuquaquá, no Pinhém, que se compõe de O recado do morro, Cara-de-bronze e A estória de Lélio e Lina.

Volume 3:
Noites do Sertão, com Dão-Lalão e Buriti.

E só no aniversário de 60 anos, em 2016, as novelas vão ser reunidas de novo em um box, mas mantendo esta divisão, que traz uma coerência de um livro uno.

Acelera Texto
Corpo de Baile é um livro não tão falado quanto Grande Sertão: Veredas

Regina
O crítico e tradutor Paulo Ronai faz uma observação importante quando afirma que Corpo de Baile é um romance que ninguém leu. E as razões do mercado editorial explicam em parte esta falha, já que seria mais fácil vender os volumes separadamente.

Rosa tece as narrativas de Corpo de Baile numa urdidura harmônica, composta de textos que se relacionam entre si, personagens que transitam entre as novelas. Os personagens perpassam pelas novelas, os casos mais emblemáticos sendo o do menino Miguilim de Campo geral, que reaparece como o adulto Miguel em Buriti, numa atmosfera completamente diferente daquela da sua infância. Ou do Grivo, amigo de Miguilim, que lhe contava “histórias compridas, diferentes de todas”, que surge em Cara-de-bronze, como o vaqueiro que vai buscar “o quem das coisas” para o fazendeiro do Urubuquaquá.

Acelera Texto
Que tal resumir essas novelas pra gente, começando com Campo Geral?

Regina

1
Campo Geral

Abre o Baile, por causa do protagonista Miguilim, e por ser um tratado sobre a infância, passou a ser o mais popular entre os textos de Rosa e tornou-se a porta de entrada para a sua literatura. Sempre que me perguntam por onde se deve começar a ler Rosa, não tenho dúvida de que este texto não apresenta as dificuldades que tanto inibem quem tem medo de Guimarães Rosa.  A infância de Miguilim, tão misturadamente sofrida e bela, tem claramente traços biográficos. Rosa dizia:  “Aquela miopia de Miguilim foi minha. Escrevi aquela novela, em quinze dias, em lágrimas. Chorava muito enquanto a escrevia. Lágrimas sentidas, grossas, descidas do fundo do coração”.

2
Uma estória de amor

É baseada num fato real, a do vaqueiro Manuelzão, que constrói uma capela e um cemiteriozinho para a mãe, num ermo, o baixio da Samarra. E a ficção se entranhou na realidade a tal ponto que a capela e o cemiteriozinho ainda estão lá, na imensa desolação da vida, e o local se tornou destino de peregrinação dos devotos roseanos.

3
O recado do morro

Esta é a estória de uma canção que viaja e se transforma num enredo enigmático de intrigas e traições. José Miguel Wisnik faz uma das mais instigantes interpretações desta novela do ponto de vista astrológico. Vale a pena conferir o que ele diz.  Morro da Garça mais que paisagem, mais que personagem, se tornou um importante polo de cultura do sertão, e, como Cordisburgo, mantém a obra viva. É também local de peregrinação de viajantes literários.

4
Cara-de-bronze

Este talvez seja mais dificultoso dos textos do volume, é urdido por várias camadas de narração: texto dramático, notas de rodapé, roteiro cinematográfico e manifestações da cultura popular, como trovas, narrativa tradicional e improvisos poéticos. Narra a saga do Grivo, que sai pelo mundo a pedido do fazendeiro Cara-de-Bronze para uma viagem em busca de algo que só eles sabem. Em carta a seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa nos dá a chave: ele afirma que a viagem do Grivo é a busca pela Poesia, com P maiúsculo.

5
A estória de Lélio e Lina

É um tratado sobre o amor no sentido mais amplo. Lélio, que chega ao Pinhém para se curar de uma paixão, experimenta lá todos os tipos de amor: o carnal, o proibido, o conveniente, o necessário. Até que no final vai embora com uma velhinha, Lina, com quem mantém um amor espiritual. É em Lina, uma velha moça, que lhe dá conselhos e o orienta sobre as questões da vida, que Lelio, o moço velho, encontra seu porto seguro.

6
Dão-Lalão

Primeira novela de Noites do Sertão, é onde o erotismo está muito presente. Soropita, um vaqueiro aposentado, agora fazendeiro, se casa com Doralda, ex-prostituta, e passa a viver os dilemas desta escolha, que é conciliar sua vida pessoal, feliz e erotizada, com sua formação patriarcal conservadora. O passado de Doralda, além de ter enredado e encantado Soropita, também o assombra. Estudos comparativos muito bem embasados provam que Dão-Dalalão remete ao Cântico dos Cânticos.

7
Buriti

Fecha o Baile. Esse nos traz de volta Miguilim na pele de um Miguel adulto, veterinário que chega à Fazenda do Buriti Bom em busca de Maria da Glória, dona de muita alegria, a alegria que Dito prometera a Miguilim na novela inicial. Um cenário envolto numa atmosfera de erotismo presente na fazenda do Buriti Bom, onde convivem personagens complexos, como as diferentes mulheres que reinam na casa, e até na natureza, onde o Buriti Grande domina a paisagem e é descrito como um símbolo fálico.

Acelera Texto
Um ótimo Baile. Mas por que será que esse livro, Corpo de Baile, ficou escondido, dentro do armário?

Regina
Talvez pela exuberância e pelo ineditismo de GSV, Corpo de Baile tenha ficado na sua sombra. Prova disso é a fortuna crítica imensamente maior que o romance teve ao longo do tempo. E são raros os estudos que analisam Corpo de Baile como um corpo só. Mas, à medida que o lemos como um corpo só, mais aumenta a compreensão das partes. Porém, mais do que novelas, ou romance, Corpo de Baile é um grande poema. Mais do que o sertão metafísico de GSV, o sertão de Corpo de Baile é um sertão onírico, alquímico, astrológico, com uma densidade poética absurda.

Corpo de Baile é uma experiência sensorial intensa que vale a pena ser percorrida. Este grande romance travestido de novelas, catalogado ora como novelas, ora como contos, ora como poemas, é mais experimental que GSV, é poesia pura. É sobretudo a narrativa da transmutação da tristeza, da angústia, do imobilismo, na pedra mágica da poesia.

Acelera Texto
Nossa, muito bom, grande viagem. No nosso  próximo RadioLímgua ouviremos passagens de Corpo de Baile escolhidas pela Regina Pereira.

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Uma resposta para “Corpo de Baile do João Guimarães Rosa por Regina Pereira”

  1. […] é o seu Radio Língua, canal de áudio do Acelera Texto. Regina Pereira selecionou passagens do Corpo de Baile. Vamos […]

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