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Grande Sertão Veredas definitivo livro do Guimarães Rosa
Todas as literaturas têm suas catedrais, seus vastos terreiros, templo monumentais. Entre nós, há o Grande Sertão: Veredas. Definitivo livro. Vamos ouvir, em mais um Radiolíngua do Acelera Texto, a Regina Pereira – devota dos caminhos e literatura de João Guimarães Rosa.
OUÇA AQUI: Grande Sertão Veredas definitivo livro
Leia a transcrição do áudio:
Acelera Texto
Este é o seu Rádiolíngua, canal de áudio do Acelera Texto – seu laboratório de Escrita Digital. Conosco está a Regina Pereira – ela fez da língua portuguesa seu ofício como repórter, revisora, checadora. É também uma leitora apaixonada. Regina, bom dia! Hoje, vamos de encontros. O encontro entre João Guimarães Rosa, um poeta e um vaqueiro.
Regina Pereira
Bom-dia, Fernanda.
Vamos falar do encontro de Guimarães Rosa com o poeta Manoel de Barros e com o vaqueiro Mariano, que deixaria marcas no que viria a seguir: Grande Sertão: Veredas.
O romance que Graciliano Ramos profetizou que seria lançado em 1956, GSV, teve um longo período de elaboração, pois dez anos tinham se passado desde Sagarana, e Guimarães Rosa era então um homem marcado pela experiência da proximidade com o Mal na figura sinistra de Hitler, no tempo em que ele morou em Hamburgo servindo como cônsul adjunto. Deste período temos os Diários de Hamburgo, do qual conhecemos poucos trechos, nunca publicado, porque as filhas nunca permitiram. São relatos de um escritor que flertou com a morte, com bombardeios, que teve a casa destruída numa noite em que premonitoriamente saiu para comprar cigarros e escapou. Que ajudou, com a segunda mulher, Aracy Moebius de Carvalho, a salvar uma centena de judeus do Holocausto, concedendo-lhes passaportes cristãos.
Terminada a guerra, Rosa passa um tempo em Paris servindo ao Itamaraty, de onde escreve ao pai dizendo que planeja uma viagem de canoa pelo rio das Velhas, como um naturalista, o que acaba não acontecendo. Mas em 1952 ele faz duas viagens marcantes pelo Brasil, uma delas para o Pantanal, onde conhece Manoel de Barros, que lhe dá conselhos estéticos. Vendo Rosa deslumbrado com a exuberância do Pantanal, Manoel adverte:
“Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, com a sua linguagem calibrada, os excessos do natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la.”
AT
Eu queria ser uma mosquinha para ver o encontro entre esses dois grandes mestres…
Regina
Eu também… Com base na escrita que vinha elaborando, Manoel fala a Rosa. E este tão bem assimila a lição já na composição de Vaqueiro Mariano, texto publicado inicialmente como reportagem poética em O Cruzeiro e depois postumamente em Estas estórias. O pequeno relato da sua viagem ao Pantanal pode ser considerado a pré-escrita de Grande Sertão: Veredas. Pois em Um certo vaqueiro Mariano, a preocupação com a narrativa, com a descrição contadora, se pronuncia. Num trecho “sobre a alma dos bois”, Rosa interrompe a narrativa e escreve:
“Te aprendo ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro, sob de vez contador. A verdadeira parte, por quantas tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensina ao limoeiro e que um boi não consegue dizer a outro boi. Isso o que acende melhor teus olhos, que dá trunfo à tua voz e tento às tuas mãos. Também as histórias não se desprendem apenas do narrador, sim o performam: narrar é resistir.”
Alguns críticos consideram Mariano mentalizador dos falares e dos narrares de Riobaldo. A matriz de Riobaldo. Um certo vaqueiro Mariano teve uma edição limitada de 150 exemplares onde se lê na dedicatória de Rosa:
“Olha aí Manoel, sem folclore, nem exotismo, como você queria”.
AT
E segue Guimarães Rosa, com a Regina Pereira, aqui no Radiolíngua.
Regina
A outra viagem ele faz pelo sertão de Minas cavalgando a mula Balaika quando percorre 240 km entre a Fazenda Sirga, em Três Marias, e Araçuaí, acompanhando uma boiada. Nesta empreitada convive com vaqueiros, e nas noites de descanso, em volta do fogo ancestral, pede que venham velhos e velhas contadores de histórias. Anota tudo em cadernetas, como um naturalista: o canto dos passarinhos, o linguajar dos vaqueiros, o mugido dos bois, as plantas do caminho. Este material sai publicado postumamente.
Não faz a viagem de canoa, mas, para compor parte dos cenários de GSV, utiliza os relatos e os mapas de Spix e Martius, que percorreram o Brasil de 1817 a 1820. Nos escritos dos naturalistas encontra-se até uma guerreira donzela, como Diadorim. Portanto, dá para perceber que o processo de composição de Grande Sertão é complexo. Grande Sertão desde seu lançamento tem a fama de livro difícil. E a dificuldade que muitos leitores encontram começa já com a primeira palavra: nonada, que, embora pareça, não é um neologismo, mas um vocábulo que existe no português e no espanhol e significa não é nada.
AT
Regina, tem muita gente que acha Grande Sertão Veredas um livro difícil de ler.
Regina
Sim, tantas décadas depois, muitos leitores ainda acham isso. Afonso Arinos faz uma advertência curiosa e precisa a respeito desta dificuldade:
“Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas”.
Uma dificuldade que vem de uma estrutura narrativa semelhante a um labirinto, com muitas entradas e poucas saídas. Um desafio que exige do leitor concentração e persistência. Uma estrutura que se assemelha ao próprio sertão, uma região embutida dentro de um país gigantesco, como é o Brasil, quase sempre voltado para o litoral.
Uma constatação com relação a essa dificuldade é que é preciso passar por uma espécie de penitência, que são as 150 primeiras páginas de quase 600. Vencido este Liso do Sussuarão (deserto que os jacunços da história só conseguem atravessar na segunda tentativa), o leitor estará irremediavelmente enredado nas teias de uma estrutura que se compõe de várias histórias. GSV é um livro composto de vários livros.
Antonio Candido resume bem essa estrutura:
“Grande Sertão: Veredas é desses livros inesgotáveis, que podem ser lidos como se fossem uma porção de coisas: romance de aventuras, análise da paixão amorosa, retrato original do sertão brasileiro, invenção de um espaço quase mítico, chamada à realidade, fuga da realidade, reflexão sobre o destino do homem, expressão de angústia metafísica, movimento imponderável de carretilha entre real e fantástico e assim por diante.”
Neste sentido Grande Sertão possui a qualidade dos grandes livros: é uma obra aberta.
AT
Como assim, uma obra aberta?
Regina
O modo como Rosa urdiu GSV é curiosa. GSV é uma ousadia, uma aposta alta de Rosa. Como prender o leitor numa narrativa contínua, de 600 páginas, de um jorro só, sem divisão de capítulos, dando voz a um ex-jagunço que relata sua história, seus dilemas existenciais, a um interlocutor que não emite uma só palavra, o que causa muita especulação sobre quem seria ele: o leitor? O próprio autor? Acho que todas as explicações são possíveis, e a de ser o próprio autor mais ainda, porque Rosa sempre, desde a infância, se colocou no lugar daquele que ouve.
Dando palavra a um jagunço o romance elimina o contraste praticado pela prosa regionalista entre uma linguagem pitoresca e folclórica, que é a do sujeito analfabeto, e a outra, que é privilégio da classe a que pertence o escritor, que assim, usualmente exibe ao leitor um exotismo ralo. Isso não acontece em GSV.
Dar verossimilhança a um jagunço que passa de analfabeto a mestre de letras e consequentemente a um homem articulado é um lance de dados ousado de Guimarães Rosa.
Aposta arriscada ao compor um personagem que veio do povo e na aparente simplicidade da sua linguagem coloca questões tão altas de um modo que não pareça superficial, fake. Acreditamos em Riobaldo. Nos apaixonamos por Riobaldo. Filosofamos com Riobaldo.
Aposta arriscada também porque o livro, mesmo depois de revelado o segredo sobre a identidade de Diadorim, não perde o encanto. Antes continua rendendo teses e sobre a natureza da relação de Riobado e Diadorim. Aposta arriscada também porque ele partiu de uma vertente da literatura brasileira muito cansada, o regionalismo, o pitoresco da linguagem, o arcaísmo, o tema do jaguncismo. Quando se pensava que a literatura brasileira tinha superado essa linha, aparece um escritor falando de sertão com uma exuberância verbal, que era considerada ruim na literatura regionalista. Com base em tudo isso faz uma literatura inteiramente nova, uma ficção com temas universais, com todos os questionamentos do homem:
Quem sou eu, pra onde vou?
Deus existe. O Diabo existe?
AT
Existirmos a que será que se destina?
Regina
Como explicar este paradoxo? Um regionalismo que não é regionalismo. Ele fez o livro que supera o regionalismo a partir do regionalismo e cria o que alguns críticos, como Antonio Candido, chamam de transregionalismo. O sertão de Rosa não é real, é mais, é arreal.
E num momento em que o Brasil se volta para a modernidade com Brasília, uma capital escrita nos vazios do Planalto Central, a indústria automobilística, a bossa nova, o concretismo, Rosa se volta para o arcaico. Aparentemente. Enganosamente. Teses e teses foram escritas para explicar esta decisão e esta aposta dele.
Rosa estava criando uma linguagem ao mesmo tempo plantada na realidade da região, mas ao mesmo tempo ligada ao passado da língua portuguesa, a uma criação de palavras, a uma invenção dele, o que acontece muito por exemplo na língua alemã em que é possível fundir palavras, meias palavras, para fazer uma palavra nova. E o conhecimento absurdo que ele tinha de inúmeras línguas dava a ele o direito de transcender a própria língua. Por que ele não criava as palavras do nada. O resultado da alquimia dele vinha exatamente dessa intimidade dele com inúmeras línguas.
Ele elabora o regional por meio de um experimentalismo que o aproxima do projeto das vanguardas. Não é um pitoresco ornamental, realismo imitativo, mas uma dimensão temática tão importante quanto a dimensão linguística, que parece criar uma outra realidade, porque a palavra ganha transcendência, e passa a valer por si mesma.
AT
Você acredita que Guimarães Rosa bebeu o sertão do Euclides da Cunha, autor de Os Sertões?
Regina
Certamente também bebeu, mas Euclides escreve sobre o sertão, de forma racional. Em Grande Sertão: Veredas, Rosa escreve como o sertão. Riobaldo lê os caminhos labirínticos do sertão e da natureza e transforma em linguagem. Este é o grande salto quântico da obra.
Mario Vargas Llosa dizia que os livros diferentes que compõem GSV são como a Santíssima Trindade: um só Deus, e que Guimarães Rosa escreveu um romance ambíguo, múltiplo, destinado a durar, dificilmente compreensível na sua totalidade, enganador e fascinante como a vida, profundo e inesgotável como a própria realidade.
Grande Sertão, é como um oráculo, e não se esgota diante das várias possíveis, e para mim diante deste livro eu reconto uma fala de Riobaldo:
“As coisas assim a gente não perde nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas”.
Se as 600 páginas de GSV já são um projeto de fôlego, vale lembrar que alguns meses antes, Guimarães Rosa dera à luz mais de 700 páginas, as magníficas sete novelas que compõem Corpo de Baile.
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