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Guimarães Rosa homem da palavra

Por Fernanda Pompeu em Arquivo

João Guimarães Rosa homem da palavra. Entrevista com Regina Pereira

Guimarães Rosa homem da palavra é o segundo programa do Canal Radiolíngua do Acelera Texto, com Regina Pereira. Aperte o cinto para decolar.

OUÇA AQUI:

João Guimarães Rosa homem da palavra.
Leia a transcrição do áudio:

Acelera Texto 

Este é o Rádio Língua, canal de áudio do Acelera Texto – seu laboratório de Escrita Digital. Conosco está a Regina Pereira – ela fez da língua portuguesa seu ofício como repórter, revisora, checadora. É também uma leitora apaixonada. Regina, bom dia! Hoje, vamos falar do quê?

Regina Pereira

Vamos falar de Guimarães Rosa e o processo criativo: um tanto de elaboração, um tanto de misticismo.
Ele dizia: “O idioma é a única porta para o infinito”.
Vamos dar voz ao próprio autor falando de como procede sua escrita, de como considera a sua obra produto de muito trabalho, mas também de muitos mistérios insondáveis.
Antônio Callado dizia que “Rosa não facilitava a vida de ninguém, ele queria que você se dedicasse a entendê-lo, exigia esse esforço. Rosa é uma espécie de Van Gogh, uma pessoa que queria fazer a própria tinta, que se preocupa com saber como é feita a tinta”.
E Guimarães Rosa dizia de si mesmo:
Rosa é como uma ostra, projeta o estômago para fora, pega tudo o que tem de pegar, de todas as fortes pessoas e reintrojeta de novo naquele estômago, mastiga tudo aquilo e produz o texto”.
Em uma longa conversa com o crítico alemão Günter Lorenz, Rosa fala abertamente de seu processo criativo e de seu credo:
Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente.”

AT

E João Guimarães Rosa disse muitas outras coisas…

Regina

Sim. Ele disse:
Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras.”

Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Isto me acontece de forma tão consequente e inevitável que às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo…

No fundo é muito simples. Deve-se apenas partir do princípio de que há dois componentes de igual importância em minha relação com a língua. Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas consequências. Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas do português e do espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se pode compreender com a razão pura.”

Meu método implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original. Por isso, e este é o segundo elemento: eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que são linguagem literária e ainda têm sua marca original, não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria linguística.”

Não sou um revolucionário da língua. Quem afirme isto não tem qualquer sentido da língua, pois julga segundo as aparências. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem.

Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão. No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por isso ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua.”

Amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa. Isto é importante, pois sem esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original.”

AT

Também Guimarães Rosa foi um grande escritor de cartas. Gostava de conversar com seus tradutores…

Regina

Exato. Em correspondência com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa reafirma o lado místico do seu fazer:

Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se estivesse ‘traduzindo’, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no’ plano das ideias’, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando nessa ‘tradução’. Assim, quando me retraduzem para um outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu desvirtuara…

AT

Há também outras cartas em que Guimarães Rosa fala do seu processo de escrita.

Regina

Numa carta ao embaixador Antonio Azeredo da Silveira, de 1947, Guimarães Rosa, ao falar sobre o processo de construção textual, revela a atmosfera de ansiedade em que vivia logo antes de escrever as obras posteriores a Sagarana, seu primeiro livro publicado. Nela revela como seu projeto era realmente ambicioso:

Eu ando febril, repleto, com três livros prontos na cabeça, um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. Estou apontando o lápis, para começar a tarefa. É coisa dura, e já me assusto, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço. Mas, que fazer? Depois de certo ponto um livro tem de ser escrito ou fica coagulado na gente, como um trombo na veia, pior que um “complexo”. Tenho esperança de poder criar coisa nova e diferente, de superar o nosso Sagarana, com histórias e romances mais humanos, mas ao mesmo tempo, mais meta-humanos, mais super-humanos, que sei!?!…

O bom seria fazer-se um livro só, de 5.000 páginas, que seria escrito e reescrito durante a vida inteira. Ou – que beleza! – três gerações de romancistas (pai, filho, neto), trabalhando num roman-fleuve, catedralesco, pétreo, trigeneracional…”

Rosa encantou-se muito cedo, por isso nunca saberemos se esse projeto não poderia ter se cumprido em sua totalidade, nunca saberemos aonde ele poderia chegar. O que sabemos é que ele deixou marcas profundas na literatura brasileira e, por que não?, na literatura universal, já que Rosa é muito traduzido para várias línguas, até para o dinamarquês, por exemplo. Claro que são traduções que não dão conta do original, mas explicam o fascínio que esse feiticeiro das palavras exerceu e exerce no mundo todo.

AT
Muito bom, Regina Pereira. Espero que nossos ouvintes tenham curtido esse RádioLíngua, Guimarães Rosa homem da palavra. Aliás, se você gostou compartilhe nas suas redes sociais. Em breve, estaremos de volta com a Regina e o João Guimarães Rosa.

Em tempo: não importa se sua intenção é escrever literatura ou despretensiosos textos de comunicação. Aprender com os melhores é boa pedida.

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