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Passagens do Corpo de Baile do João Guimarães Rosa

Por Fernanda Pompeu em Arquivo

Passagens do Corpo de Baile do João Guimarães Rosa,
selecionadas pela Regina Pereira.
OUÇA AQUI

Leia também a transcrição:

Fernanda Pompeu – Acelera Texto
Este é o seu Radio Língua, canal de áudio do Acelera Texto. Regina Pereira selecionou passagens do Corpo de Baile. Vamos ouvir.

Regina Pereira

1
A morte do riachinho, trecho de Uma estória de amor, é um momento de pura poesia, vamos fluir com ele:

 “Se solambendo por uma grota, um riachinho descia a encosta, um fluviol, cocegue ando de pressas, para ir cair, bem em baixo, no Córrego das Pedras, que acabava no rio De-Janeiro, que mais adiante fazia barra no São Francisco. 

 Dava alegria a gente ver o regato botar espuma e oferecer suas claras friagens, e a gente pensar no que era o valor daquilo. Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com rogojeio e suazinha algazarra – ah, esse não se economizava: de primeira, a água pra se beber. 

Então, deduziram de fazer a Casa ali, traçando de se ajustar com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes, a porta-da-cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porém, estrito no cabo de um ano de lá se estar, e quando menos esperassem, o riachinho cessou.

Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho.

Acordaram, se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta-da-cozinha. Manuelzão adiante, os cachorros sempre latindo. 

– “Ele perdeu o chio…” Triste duma certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora, o riachinho de todos.

Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os pés no fresco lameal. Manuelzão, segurando a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo com um estranhado diferente, ele se debruçou e esclareceu.

Ainda viu o derradeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palmo a derradeira gota, o bilbo. 

E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos tremiam mágoa nos olhos.

Ainda esperaram ali, sem sensatez; por fim se avistou no céu a estrela-d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido”.

2
Agora a seleção de um dos momentos mais emblemáticos de Campo geral, quando Miguilim, depois de descoberta a sua miopia, coloca os óculos:

“Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo…”

 E logo em seguida tem um trecho de Campo geral, um diálogo entre Mãe, Miguilim e Dito, também muito bonito.

“Mãe, que é que é o mar, Mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um mundo d’água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. – Pois, mãe, então, mar é o que a gente tem saudade?

A gente olhava mãe, imaginava saudade. Miguilim não sabia muitas coisas. – Mãe, a gente então nunca vai poder ver o mar, nunca? Ela glosava que quem-sabe não, iam não, sempre por pobreza de longe.
– A gente não vai, Miguilim. O Dito afirmou: Acho que nunca. A gente é no sertão. Então por que é que você indaga? Nada, não, Dito. Mas às vezes eu queria avistar o mar, só para não ter uma tristeza…!”

 3
Finalmente um trecho de Cara-de-Bronze, quando ele faz uma espécie de concurso para escolher quem vai ser seu correspondente de belezas pelos Gerais, é puro Manoel de Barros

“Três, que eram. Mainarte, José Uéua e o Grivo. E o Cara-de-Bronze ouvia, pensava e olhava — com um olhar de olhos. Ele queria era um só.
— Aquilo não era fácil. O homem media nosso razoado…
— Carecia de se abrir a memória!
— E ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém não faz conta…
— O Velho mandava todos os três juntos, nos mesmos lugares. No voltar, cada um tinha de dar relato a ele, separado.
— Ensinava à gente: era a mesma coisa que desenvolver um cavalo.
Mandava-os por perto, a ver, ouvir e saber — e o que ainda é mais do que isso, ainda, ainda. Até o cheiro de plantas e terras se espiritava. “Buriti está tocando…” — era de tarde, na variação do vento. “Os bois são mil cabritinhos?” “Flôr que murcha e viça, em quatro vezes de tempo…” “Tem buracos no amarel’…” “Estou que fiquei lá, respirando para as árvores…” Isso é um ofício. Tem de falar e sentir, até amolecer as cascas da alma. “… A umburana, rôxo lã…” Daí em vante. “— Nessas horas da roseira…” Tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do dôido rojão das coisas proveitosas. “… O vento safirento se arregaçando dos altos…” O Velho mandava. Tinham de ir, em redor, espiar a vista de de-cima do môrro e depois se afundar no sombrio de todo vão de grota, o que tem em toda beira de vertente, e lá em alta campina, onde o sol estrala; e quando o vento roda a chuva, quando a chuva fecha o campo.
Tudo tinham de transformar, ter em outras retentivas.
Mas o Grivo dava sota e ás. O Velho escolheu o Grivo.”

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